A improvável combinação de filosofia, ciência e literatura de ficção científica faz de Autobiografia de um polvo um livro bastante singular. Nele, Vinciane Despret, uma das pensadoras mais instigantes da atualidade, se inspira na ciência ficcional da therolinguística, a disciplina científica que estuda a linguagem dos animais criada pela escritora Ursula K. Le Guin, para apresentar em cada capítulo um estudo sobre a comunicação e a poética de diferentes animais, como as aranhas, os vombates e os polvos. As narrativas estão situadas em um futuro no qual os conhecimentos sobre a linguagem dos animais conformam um campo de pesquisa bem consolidado, composto de diversas vertentes que tensionam os limites do que entendemos por linguagem.
Nessas abordagens de surpreendente originalidade, nos temas e nas formas, são apresentados novos caminhos para as ciências e outros entendimentos das relações com e entre animais e demais seres (vivos e não vivos) – uma renovação que se faz ainda mais premente em um mundo transformado pelo aquecimento global e pelo fim do capitalismo. Encarnando o gosto pelas misturas na própria narrativa, Despret faz autoras e autores clássicos dialogarem com pesquisadores e artistas completamente ficcionais. Autobiografia de um polvo consiste numa provocação tão audaz quanto divertida a respeito das relações atuais e possíveis com os não humanos que habitam o mundo conosco.
O livro inaugura a Coleção Desnaturadas, coordenada por Alyne Costa e Fernando Silva e Silva, que reúne trabalhos desenvolvidos por mulheres que ousam "desnaturalizar" saberes, relações, corpos e paisagens, fazendo emergir mundos complexos e novas perspectivas. Oriundas de diferentes campos das ciências e das humanidades, essas autoras abordam alguns dos temas mais urgentes do debate contemporâneo, como a crise ecológica, o lugar das ciências nas sociedades atuais, a coexistência entre verdades e saberes modernos e não modernos e a convivência com seres outros-que-humanos.